Eu era um recém chegado em Kathmandu após 20 dias camelando pelas montanhas sagradas no entorno do Everest.
Kathmandu é uma dessas cidades malucas onde nada faz muito sentido (até para um paulistano) e esfregam na sua cara situações extremas e fotos prontas a cada esquina. Cheiros, nuances, olhares, cores.. enfim, é tudo muito doidão.
Câmera à tira colo e um guia a minha disposição, batia pé em um dos principais templos hindus do pedaço, daqueles onde cremam corpos na sua frente, rolam umas promessas e votos insalubres e 90% dos transeuntes aparentam ter uma vasta experiência no plano espiritual.
Mas maior que tudo isso, ali, o costume ou hábito asiático em cuspir (se acredita que expelir a secreção é melhor que engolir) era elevado a uma infinita potência, justamente pelo crematório à céu aberto fazer uma fumaça do caralho. Resumindo: o chão era todo escarrado. Todinho.
E que ironia do destino: a minha chinela que havia me respaldado cerca de uns 99 dias pelo solo oriental decidiu que era um bom momento para estourar. “Ploft...” o vazio no dedão cedeu lugar a um breve desespero.
Não sei se as entidades, por pura diversão, estouravam com frequência sandálias dentro daquele templo, mas fora, sentado na calçada poucos metros da entrada, havia um sapateiro, atento e pronto para consertar qualquer pisante que pintasse na sua mão. Aquilo era frequente, senão ele nunca estaria ali.
Como um borracheiro ele foi remendando a sandália e a imagem se colocou pronta na minha frente. Abaixei, mostrei a câmera, com um gesto de cabeça ele permitiu o clique e, ao invés de fugir os olhos da lente, ele a encarou.
Todo o protagonismo do sapateiro em seu olhar. Talvez ele soubesse a importância de seu ofício naquelas bandas. Talvez. Mas guardo firme na memória a forma como cheguei até ele. Isso eu não conto a ninguém.